Tico e sua crise de identidade

 


 Tico e sua crise de identidade

Nas minhas andanças em Portugal e Espanha, entre setembro de 2022 e fevereiro de 2023, na jornada missionária, tive a honra de conviver com uma família brasileira, com cidadania portuguesa e espanhola, radicada em Fuentes Del Oñoro, no lado espanhol. E na lida de cuidar de cabras, ovelhas e outros animais domésticos, tive a oportunidade de conviver com o bode Tico, que rendeu uma conto abençoado, que segue abaixo. 

Tico vivia intocável, inabalável em seu cercado, rodeado de fêmeas, em verdadeira relação poligâmica. Ninguém o confrontava. Como verdadeiro ditador, carregado de poder, ditava as regras, determinando as direções, Era o condutor da caravana, sempre que ia ao campo, para passear ou para se alimentar. Afinal o espaço era grande e podia fartar-se por longas horas durante o dia. Nada fugia ao controle de Tico. E quem ousasse se desviar, ou ao menos se desgarrar, era imediatamente pressionado por Tico, que não perdia um lance, sempre atento ao que julgava ser seu.

Desde os três meses de idade, Tico habituou-se a conviver com o outro gênero. E ao longo do tempo, forjou sua identidade e pasmem, formou uma identificação, considerando que era correspondido nessa relação. Pelo menos, pela força e opressão.

Posso falar verdadeiramente dessa situação. Afinal, conheci Tico em uma tarde de outono. Confesso que desde o início, eu e Tico, Tico e eu tivemos uma relação, digamos que um tanto difícil. Ele não aceitava minhas orientações e por força do cargo, eu tinha que impor algumas regras, às quais Tico, já moldado, não estava acostumado e invariavelmente andávamos às turras.

Além de não aceitar meus argumentos, Tico, movido por uma enorme teimosia e claro, sentindo-se ameaçado, e para não perder o controle da situação, confrontava-me, mas nunca fomos às vias de fato. E ainda que alguma coisa saísse fora do controle, Tico, sentindo-se o verdadeiro e único comandante, tratava logo de proteger as suas donzelas, como a defendê-las dos inimigos imaginários – no caso, eu - ou dos possíveis pretendentes. 

E assim os dias foram passando, sempre com a impoluta e forte presença de Tico, que pelo gênio difícil, sempre arengava com alguém. Nada era tranquilo com a presença de Tico, mas nada que não pudesse ser evitado ou apartado, para o bem comum da comunidade.

Mas o temperamento ácido de Tico não permitia tempos de paz, talvez algumas tréguas, que eram rapidamente quebradas pela insensatez, arrogância ou quem sabe, insegurança de Tico. Cheguei a pensar que possivelmente Tico tinha algum trauma de infância, ou que ainda não tinha se decidido quanto ao que realmente queria ser.

Mas ainda assim, a história seguia seu curso. E o harém ia só aumentando, para deleite de Tico, que se sentia o todo poderoso. Sem concorrentes. Quando alguém se atrevia a chegar perto das suas fêmeas, Tico tratava logo de pôr para correr.

Mas, um dia, a sorte de Tico mudou e sem mais nem menos, viu-se longe de sete fêmeas, das oito que sempre estavam sob sua liderança. E seu temperamento, que já era forte, tornou-se violento. Dizem nas bandas de Fuentes de Onõro – na Espanha, divisa com Vilar Formoso, já no lado português, que não era raro encontrar Tico sozinho, deprimido, chateado, porque fora afastado do seu harém. E isso desagradou completamente a Tico, que todos os dias, se isolava dos poucos liderados que ficaram, e vagava pelos campos, pelas parcelas, invadindo até terras alheias, na busca das companhias que perdera. As amadas faziam falta, e Tico gritava, chamava e repetia as longas caminhadas todos os dias nos lugares em que achava que poderia encontrá-las. Não as via. Não as encontraria mais.  E isso enchia Tico de rancor.

Percebia-se que Tico estava triste, apático, com ar doentio. E essa situação acabou por mudar completamente o ânimo de Tico, que decididamente tornou-se violento, furioso e todos os que se aproximavam dele eram vistos agora como inimigos. Tico imaginava que todos conspiraram contra ele e eram todos traidores, na sua opinião vingativa.

E o relacionamento ficava cada dia mais penoso, a ponto de Tico atacar as pessoas, chegando até a me ferir, certa feita, cicatriz que carrego até hoje e levarei até o fim da minha vida. Cicatriz que carrego na perna direita, na panturrilha, popularmente conhecida como “batata da perna”.

E Tico cada vez mais sorrateiro, moribundo, mas violento, tornou-se solitário, arredio, solitário pelos campos. Não permitia mais aproximação e se alguém assim o fizesse, certamente seria agredido por Tico. A situação tornou-se insuportável, a tal ponto que nem a presença da Cabeçuda, a única fêmea que sobrara, era suficiente para que Tico pudesse retomar sua rotina de vida. A inconformidade era geral e o luto não acabava.

E esse comportamento influenciou seu relacionamento com o gênero que adotara, que nem mesmo com os da sua espécie original conseguia conviver, salvo sempre às turras e cabeçadas.

Mas esse comportamento e essa crise de identidade, tinha uma razão de ser. Isso porque Tico, com seus dois anos e meio de idade, era um bode muito marrento. Sim, um bode que se sentia ovelha, não convivia entre as cabras, mas se sentia meio que guardião, meio que ovelha e assim fora toda a sua vida. Tico se sentia como ovelha macho, tanto que dominava até o único macho – o Bebê - que havia entre as ovelhas.

Tico, um bode que renegou sua espécie, que perdeu suas fêmeas e mudou completamente de atitude. E isso lhe trouxe enormes dissabores. Por causa da sua rebeldia, da sua teimosia, Tico acabou sendo vendido e abatido, servido como suculenta refeição na casa de uma família muçulmana que o comprou.


Pr. Gilberto Silva - Gurupi-TO

Irmão Paulo, querido amigo de Fuentes Del Oñoro-Espanha